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sexta-feira, 3 de agosto de 2012

3 - A VINGANÇA



A VINGANÇA TEM UM PREÇO
O clima de consternação e revolta contrastava com a beleza e a paz do lugar. Estavam todos num cemitério diferente dos tradicionais, pois em vez de sepulcros e cruzes, apenas um imenso gramado, ornamentado por muitas flores e rodeado por bosques. Para demarcar o local onde repousa o ente que se foi, colocaram apenas placas com elaborados epitáfios, confeccionadas em materiais que vão do granito elegantemente polido ao mais nobre e caro mármore importado. Um cortejo em torno de um dos vários sepulcros, distribuídos geometricamente, chama a atenção de quem por ali “passeia”. De longe se ouve o lamento da perda trágica. Alguns dos presentes no ato fúnebre confabulam entre si sobre a desgraça que abateu o ânimo do velho progenitor da última linhagem dos Goldmam. A família atingida pela tragédia é composta por controladores de um poderoso cartel, que estende negócios do cimento à indústria naval.
O jovem que perecera em meio a uma tumultuada perseguição policial, era o herdeiro de tudo o que representa o sobrenome daquela família neste país. Em meio ao séquito, um idoso com dificuldade de movimento na perna direita, devido a uma trombose, é o único que não transparece dor ou tristeza.
Do olhar frio dele emana somente um vil sentimento: o ódio.
Ereto, apesar da idade, parece um tronco resistindo à tempestade. Não sorri e nem desvia o olhar da cova que engole aquele que foi o depósito de suas esperanças.
Ele não responde às condolências e para todos dirige sempre o mesmo olhar.
Não dá para se afirmar o que ele quer dizer, mas é um olhar diferente, maligno.
Outro homem de idade, que vai além dos cinquenta, se aproxima e em voz quase sussurrada, fala bem próximo do ouvido do avô do morto:
-Sinto pelo seu pesar meu amigo.
-Não sinta.
Responde o velho sem piscar e nem olhar para o rosto de quem lhe dirigiu os sussurros.
O interlocutor levantou o olhar impressionado.
-O que eu posso lhe dizer neste momento?
-Apenas o que quero ouvir. Responde o ancião rispidamente.
-E como isso poderia lhe diminuir a dor?
Sussurrou já deduzindo aonde o ancião queria chegar, que lhe voltou o olhar gélido:
-Quero que acabe com a raça do desgraçado que fez isso com meu neto. Entendeu?
A voz rouca do velho agora emanava uma energia de quem ditava uma ordem.
-A justiça já foi feita. O culpado já está preso e...
O homem não chegou a concluir e foi interrompido pelo tom forte das palavras balbuciadas pelo avô do morto.
-Justiça? Que justiça? O miserável está se refestelando no conforto de uma cela paga com o nosso dinheiro, enquanto meu neto desce esta catacumba! Perdi meu filho num acidente, dez anos atrás e agora o perdi de novo, pelo meu neto. E o que você vem me dizer? Que foi feita justiça? O miserável ainda vive e debocha de mim e do meu filho!
As palavras acompanhavam os punhos cerrados socando o fundo dos bolsos do “sobretudo” preto. O amigo, concordando com o ancião, retira do paletó um cartão com um holograma, que deriva uma imagem de uma serpente sobreposta ao numero de um celular.
-Sou advogado e sei o que significa tua revolta diante da justiça dos homens. Eu não posso mudar os fatos, mas posso confortá-lo com isso.
Ele estende a mão com o cartão entre os dedos para o velho que o observa desconfiado.
-O que é isso?
-É a “justiça” que tanto procuras. Quando alcançares teus propósitos, repasse este cartão adiante e... –olhou sério para o ancião que agora resplandecia um brilho diferente no olhar-...mantenha a máxima discrição e segredo. Eu nunca lhe repassei este cartão, entendeu?
-E daí? O que um simples cartão vai me resolver? Isso é um disque-pistoleiro? O cara está dentro de um presídio de segurança máxima. É um assaltante de bancos que nunca poderá irá sair de lá. Você pode me ajudar de outra forma: suborne alguém, facilite a saída dele, tire-o de lá, que aqui fora mando eu.  E quanto a esse cartãozinho...posso joga-lo fora, não posso?
-Eu não faria isso se fosse você. ELES me ajudaram muito e são perfeitos, exatos e não lhe decepcionarão, mas valorizam o reconhecimento e a retribuição.
-Retribuição? Você quer dizer “dinheiro”? Então são mercenários.
-Não. Eles não são mercenários. Você entenderá quando chegar a hora. Afinal, o que é que você mais deseja? E não é isso o que importa? Se fosse você, não jogaria este cartão fora.
O ancião refletiu e ponderou que talvez o amigo advogado tivesse razão. Por que não arriscar?
-Sim, qualquer que seja o preço, eu pagarei.
Falou e enfiou o cartão no bolso, voltando o pensamento para o único e funesto propósito de seu resto de vida: vingar a morte do neto.
-O-O-O-
Quinze dias depois, dois homens se encontram num café nos altos do mercado público de Porto Alegre.
-O senhor está me dizendo que não vê dificuldade nesta “ação”? Então me diga: como é que vamos executá-la?
O outro homem usando um chapéu de feltro, de pernas cruzadas e bebericando um cappuccino, resmunga:
-Você recebeu minhas diretrizes. Basta segui-las na integra. Antes, tenha certeza da qualidade das informações colhidas em nossa “rede”. Use de nossos contatos... você sabe como aproveitá-los ao máximo.
Sorveu o ultimo gole e ia levantar da cadeira quando foi interrompido pelo outro ainda sentado:
-Vamos ter que nos manter mais afastados devido ao perímetro de segurança que existe em torno do presídio. Isto significa que vamos ter que utilizar mais material e isso poderá complicar o operacional.
O engenheiro estava preocupado. O Snakers iriam atacar um local extremamente vigiado. A “operação” continha alto grau de periculosidade para a preciosa “coisa”.
-Não me preocupo. Você é um engenheiro talentoso. Saberá como contornar os obstáculos técnicos. Qualquer dificuldade peça ajuda aos nossos “artesãos”. Tenha sempre em mente o nosso objetivo, que as ideias lhe fluirão com a nitidez necessária.
Falou o do chapéu de feltro e depositou algumas notas sobre a mesinha.
-O café estava saboroso. Tenha uma boa tarde.
Cumprimentou e sumiu entre o murmurinho agitado do mezanino do Mercado Público.
O outro apenas olhou para a xícara vazia enquanto brincava com uma colherinha de plástico.
-O-O-O-
Trinta e dois dias depois.
Local: Penitenciária de Segurança Máxima de Charqueadas.
É a hora do final do banho eventual de sol dos presos do pavilhão B.
Usando o tradicional uniforme laranja, o prisioneiro 1665-B caminha em uma fila indiana para fora do pátio de sol, em direção do corredor que dá acesso às celas. Passando por três portões automáticos dele já está novamente dentro da cadeia, depois de passear pelo olhar eletrônico de uma dúzia de câmeras e sensores de movimento. O carcereiro dá a ordem e as portas são finalmente trancadas. Neste presídio a distribuição é de um preso por cela de quatro metros quadrados. É a ala dos presos de alta periculosidade e de regime fechado. Sem visitas e com a liberdade totalmente cerceada por muros de oito metros de altura e chapas de aço no contra piso. O preso 1665-B sorri. Ele recebeu uma mensagem cifrada vinda de fora na hora do banho de Sol. Debaixo do colchonete retira um papelote com o mais puro pó. Alinha um filete branco sobre a mureta que separa o vaso sanitário do resto do pequeno cubículo e com um canudo improvisado com  o papel da mensagem suga pela narina toda a “carreirinha”. Sente um êxtase e continua sorrindo e imaginado que dali a alguns dias uma “encomenda” vai chegar pelas mão corruptas de um carcereiro.
Entretanto, um ronco vindo do fundo da cela lhe desperta do “sonho”.
-Ué? Quié isso cumpadi?
Pensou enquanto fitava a “coisa” que emergia dentro da cela, vinda do outro lado da mureta.
-Hêeeee...êta....essa é da boa mesmo...já tô viajando...de onde essa “coisa” veio?
Ele se questiona, pois não há como entrar ali sem passar pela porta. O cubículo é todo blindado para evitar fugas.
Só que o sorriso debochado do meliante dura pouco e se transforma num urro de dor.
Tudo para ele agora é só escuridão!
Enquanto isso, num monitor longínquo, a imagem formada é límpida e confirma que o “serviço” foi executado com o sucesso habitual. Homens aliviados comemoram batendo palmas e celebrando. Botões são acionados e um engenheiro dá a ordem final: “Desativar sonar e recolher pinças. Vamos sair.” 
Respondendo aos impulsos digitais vindos da Central de Comando, localizada num pavilhão em local que não pode ser revelado por questões de segurança, a “coisa” reage obediente e se recolhe pelo mesmo caminho que fez para penetrar nas entranhas do edifício da penitenciária.
Logo em seguida, e rapidamente, um caminhão Scania de cinco eixos se afasta do local, quadras distante da penitenciária, sem que pedestres desatentos possam imaginar que nele é transportada a "morte".
Os gritos do preso 1665-B ecoam e chamam a atenção dos agentes penitenciários. Quando checam as celas se deparam com um horror: ele está estirado no chão, com os braços abertos e olhos esbugalhados. Um filete de sangue escorre pelo pescoço, definido por um corte certeiro de uma lâmina que decepara a traqueia e a carótida. Em vão os agentes penitenciários tentam salvar o indivíduo. O homicídio ocorreu dentro de uma cela trancada, sem testemunhas e sem explicação convincente. Isso deixou todos, agentes e presos, apavorados e atônitos.
A imagem do sistema prisional ficou maculada, e já não é mais considerada um modelo inexpugnável.
-O-O-O-
Vinte dias depois, sob o pergolado de uma mansão localizada na rua Portulaca, em um elegante bairro de Porto Alegre, o ancião-avô sorri para o cavalheiro dono de um chapéu de feltro, cuja identidade não pode ser revelada:
-O senhor não sabe o alívio que as últimas notícias me trouxeram. Sei que isso não vai trazer os meus descendentes de volta, mas o sobrenome da minha família jamais será desrespeitado dessa maneira.
O cavalheiro de chapéu apenas sorriu de leve, demonstrando um falso interesse pelo assunto.
O ancião prosseguiu:
-Descobri que meu neto engravidou uma moça e minhas esperanças renasceram das cinzas. Sei que não estarei aqui para ver isso acontecer, mas eu estou no caminho certo e quem sabe, meu bisneto possa um dia reconhecer tudo o que fiz por ele.
-Não me importo com o que o senhor lucra o perde com isso. Apenas peço que me diga: onde está o cartão?
O velho tira de uma carteira o cartão holográfico e o alcança ao homem de chapéu de feltro, que o confere e devolve.
-Repasse-o a outro que, como o senhor, venha necessitar dos serviços de minha “organização”.
-Muito bem, e quanto lhe devo?
-Não me deve nada.
-Não entendi? Tem que haver um preço. Diga qual é. Dinheiro, propriedades, mulheres, o que quiser...
-O senhor deve-nos apenas dedicação e lealdade, nada mais, e será quitado quando e se necessitarmos.
Disse e se levantou já procurando a saída sem se importar com o olhar estupefato do ancião.
-Espere, eu pelo menos posso lhe apertar a mão em sinal de agradecimento? O senhor é o responsável pela minha paz.
O homem de chapéu de feltro nada respondeu e nem mudou o rumo. Deixou o ancião falando sozinho, com a mão estendida no ar.
Deu meia volta e embarcou em um automóvel Honda Civic preto, que o aguardava no bem cuidado jardim da residência.
O carro foi se afastando, deixando para trás mais espanto que admiração.
-O-O-O-
Fim de mais uma façanha dos Snakers.

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