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sexta-feira, 31 de agosto de 2012

7 - O EXILADO

         
          
O noticiário acordou a cidade com manchetes disparadas por dezenas de repórteres acampados diante da embaixada do Uruguai em Porto Alegre. Um homem está lá dentro pedindo asilo, alegando perseguição política. As noticias desencontradas concordam num único ponto: o perseguido pretende escapar de uma extradição, pois está no rol dos foragidos da INTERPOL. Ele é procurado pelos governos onde teria cometido crimes de terrorismo e assassinato. O consulado uruguaio não se manifestou quanto ao pedido de abrigo, para não gerar uma crise diplomática com os governos ofendidos, que imediatamente reclamaram a deportação do criminoso.
           A relutância da diplomacia platina em não atender o clamor internacional gerou protestos mundo afora. O representante uruguaio foi convocado pelo governo brasileiro a dar explicações, e o apoio dado ao asilado pelas organizações de direitos humanos, engrossou o caldo de ofensas e ameaças de retaliação entre os litigantes, instaurando uma crise política na região do Cone Sul. O governo norte-americano solicitou ao seu escritório para assuntos latino-americanos um acompanhamento do caso. O governo brasileiro emitiu apenas evasivas conclamando as partes ao diálogo, para não se envolver na questão. A imprensa internacional, ávida por mais espetáculo, publicou uma lista de atos supostamente cometidos pelo fugitivo. Em capítulos, como se fosse uma novela, foram ilustrando com gráficos e fotos, de assaltos à bancos até explosões em trens de passageiros, com estatísticas de mortos, feridos e prejuízos espalhados.
         -Todos os delitos foram praticados pelo grupo chefiado pelo senhor Arthur, que é o verdadeiro nome dele.
         A fala grave do porta-voz do governo inglês aos jornalistas era enfática: dentro da embaixada latina estava um assassino frio e sanguinário. Ele devia ser preso, deportado e julgado pelos diversos crimes que cometera.         
        As declarações do diplomata provocaram a ira dos grupos simpatizantes do asilado, amontoados defronte à embaixada castelhana. Com palavras de ordem gritavam que todas as acusações eram suposições de uma farsa. A trama era destinada a sacrificar um inocente. Berravam com amplificadores de som que não sairiam dali até que os uruguaios e brasileiros garantissem salvo conduto ao sujeito, que queria ir viver em Montevidéo.
        Os ânimos foram se elevando.
        O choque entre quem apoiava um lado e outro não tardou acontecer. As agressões verbais deram lugar a uma briga generalizada entre a polícia e as turbas que digladiaram numa luta campal. Bombas de efeito moral e cacetadas foram democraticamente distribuídas. Lojas fecharam as cortinas e moradores correram de um lado para o outro tentando escapar da violência, enquanto carros eram incendiados e pedras  voavam como foguetes.
       Enquanto isso, negociações tensas no meio diplomático tentavam amainar os efeitos que a presença indesejada do terrorista estava causando em solo nacional.
       -Não é possível que os uruguaios mantenham ele lá indefinidamente. Cabe a nós dar um “salvo conduto” para ele sair do país, mas se fizermos isso estaremos provocando uma crise maior ainda. Falou um alto funcionário brasileiro ao premiê inglês.
       -Vocês não podem fazer isso sem o aval internacional. Contrapôs o bretão, num português crivado de sotaque.
       -Vamos evocar a Soberania de Estado. Isto é direito internacional reconhecido. Porém, só o faremos se não houver uma saída negociada para o impasse. Insistia o representante tupiniquim.
      -Estudem a questão com delicadeza. Tenha certeza de que os apoiaremos, desde que os nossos interesses não sejam ignorados. O inglês levantou-se da poltrona macia e após uma despedida rápida dos demais presentes naquela reunião, deixou a ampla sala do Ministério das relações exteriores. Os presentes se entreolharam com certo desânimo.
       -E agora, o que faremos? O cônsul uruguaio foi convocado, mas até agora não nos deu resposta. O clima está muito ruim.
       Argumentou um homem calvo que trajava elegante terno cinza, riscado de azul, combinando com a gravata de grife.
      -O presidente já foi comunicado. Isto já foi além da diplomacia. Agora é entre Chefes de Estado.
       Respondeu o que tinha acabado de falar com o bretão.
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       Enquanto isso, na zona sul de Porto Alegre, numa mansão encravada no alto do morro São Caetano, um senhor sexagenário olha para a bela vista que tem do rio Guaíba pela vidraça do mirante construído justamente para isso. Ele tenta aliviar a angustia que o oprime desde que se instaurou a crise política. O exilado foi um companheiro de lutas passadas, que agora se tornou inconveniente. Com a visão da paisagem e uma tragada no cachimbo de marfim, tenta relaxar, mas não consegue. Volta-se quando o telefone toca. Um secretário particular atende ao chamado e lhe repassa o telefone:
       -Senhor Orquiz, do consulado.
       -Obrigado Hortz. Pode sair e me deixar só?
         O sexagenário e dono da mansão, sabe que um pedido seu é uma ordem, que  prontamente é atendida pelo subordinado fiel.
        -Boa tarde, “sir”! Falou o milionário, e uma voz familiar no outro lado da linha retrucou:
        -Ele voltou.
      -Sim, ele mesmo. Respondeu o sexagenário à voz rouca que denuncia problema nas cordas vocais do interlocutor.
        -Tempos ruins esses. Isto lhe parece o quê? Pergunta Orquiz, num tom de voz que só quem viveu muito tempo em terras setentrionais pode ter.
       -Parece um pesadelo. Ele não podia ter surgido em pior hora. Pensei que ele estivesse morto.
       -Mas não está e agora nos põe em uma situação delicada. Pode nos deixar sem cobertura. Contrapôs Orquiz ao velho conhecido do outro lado da linha, que não esperou que completasse a frase:
         -Temos que por fim nisso agora. Ele não pode sair do país, isto seria um desastre.
         A  suplica vinda de longe pelo telefone recebeu o rebote de um tom rude e enérgico na resposta de Orquiz, que ecoou por todo o mirante da mansão:
         -Não se preocupe, velho amigo. Ele não vai sair vivo daquela embaixada.
          -Orquiz...Orquiz! Tome cuidado com o que vai fazer. Não nos exponha ou ele dará com a língua nos dentes e aí sim, estaremos perdidos.
          -Não se preocupe. Confie em mim. Nunca deixo uma pendência para trás. Tenho plena confiança num pessoal altamente especializado, que vai resolver este impasse para nós e fazer um “serviço” limpo.
           O velho amigo de outros tempos, do outro lado da linha, desabou numa caríssima cadeirinha de aproximação - um entre tantos itens exclusivos de quem tem muito dinheiro para gastar - parecendo que o coração vai lhe saltar pela boca;
           -Por favor Orquiz, por favor, é tudo que lhe peço, não nos exponha. Os últimos que contrataste em Santiago só fizeram  merda. Foi muito difícil limpar toda a sujeira. E...
            Não completou a fala e foi cortado pela voz de Orquiz:
            -Desta vez nós acertaremos. Não se preocupe, amigo. Tudo vai dar certo. Confie.
            Orquiz desligou e o amigo, hoje um abastado milionário, ficou olhando para o aparelho na mão.       
       Ele levantou-se e se arrastou pelo amplo ambiente. Olhou demoradamente para uma moldura envidraçada, na qual pendiam medalhas e honrarias recebidas em outras épocas, pendurada acima da lareira. Foi quando combatia supostos comunistas em vários lugares do planeta. As insígnias perderam o significado nos atuais tempos. Eram lembranças que deviam há muito estarem enterradas, mas sempre alguma coisa escapava do controle  e emergia como um pesadelo do passado. Um passado de muita morte, muitas mentiras e muito dinheiro “sujo”. Voltando ao presente, ele faz um chamado pelo secretário. Começou a se sentir suado e o velho coração lembrou-se dos defeitos da idade. O velho saiu à procura do remédio para a taquicardia, com as mãos tremulas e ofegante, que sempre usa debaixo da língua nas crises agudas. O secretário surge na porta e na hora soube: o patrão teria de ser levado para o hospital.
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               Alguns dias depois....
          Em outro ponto da mesma cidade, próximo da quadra onde se localiza o prédio da embaixada uruguaia, um caminhão Scânia de cinco eixos se movimenta lentamente, procurando um lugar para manobrar e estacionar. Dentro do baú, técnicos manipulam alavancas e computadores. Recebem ordens vindas de longe, da Central de Controle. Eles dão vida ao arauto, a "coisa". A rua defronte ao consulado está bloqueada e vigiada dia e noite pela policia. Os manifestantes foram afastados e mesmo assim, permanecem fazendo algum barulho por ali.
            Dentro do prédio, o pivô da crise, já barbeado e de banho tomado, saboreia uma refeição oferecida pelos anfitriões. Ele sorri, despreocupado com os últimos acontecimentos. Enquanto conversa e degusta nacos de assado de javali ao vinho do porto, vai tracejando planos para o futuro: comprar uma fazenda e criar gado de corte nobre. Questionado como fará isso, ele argumenta que tem “algum” dinheiro guardado. Um companheiro de prato lembra que ainda não chegou resposta do governo brasileiro para o translado seguro até o aeroporto. O ex-terrorista para de comer por alguns instantes, fica apreensivo, mas ignora o comentário.
            Após aprovar o manjar que lhe fora oferecido, o fugitivo da INTERPOL diz que vai para a suíte destinada aos hóspedes, acompanhar  as noticias pela televisão. Levanta-se da mesa e se despede, sob o olhar parado dos que nela ainda estavam.
            Arthur entra no quarto e se tranca. Debaixo da cama retira uma maleta tipo 007. Abre e confere o conteúdo: barras de ouro, celular via satélite, documentos falsos e uma pistola .45, carregada para alguma eventualidade. Era tudo o que ele julgava precisar para recomeçar a nova vida, se tudo desse certo, tal como planejara. Ele tinha algumas autoridades uruguaias “na mão” e não seria difícil obter o visto permanente. O problema estava em solo brasileiro, mas ele ia deixar a diplomacia uruguaia resolver. Que eles se virassem. Algumas autoridades platinas lhe deviam isso. Liga a televisão sem prestar a atenção na programação. Aumenta o volume. Pega o celular e tecla alguns números. Fica aguardando até que alguém atende.
            -Alô! Diz uma voz feminina que recebeu a ligação.
            -Sou eu. Estou falando da embaixada. Prepare tudo. Logo, logo vou sair daqui.
            -Já conseguiu salvo conduto?
            -Ainda não, mas está quase lá. Eles não vão me deixar na mão, depois de tudo que fiz. Eles sabem que não podem....
            Um ruído de algo sendo arrastado interrompe a concentração do terrorista, que se desliga do telefonema e procura com o olhar a origem do barulho. Instintivamente saca a pistola e a engatilha. Ele tomba o telefone na cama enquanto a mulher no outro lado da linha continua a falar, sem saber que não está sendo mais ouvida. Ele se levanta e caminha com desconfiança até o banheiro. Cuidadosamente empurra a porta para aumentar o ângulo de visão. O banheiro da suíte é amplo para acomodações destinadas à hospedes. Ele não consegue ver muita coisa na penumbra e procura o interruptor na parede, ao lado da porta, com a mão direita, enquanto empunha a arma na outra mão. Procura aguçar os sentidos. Quando enfim os dedos tocam o interruptor e acende a luz, o fugitivo leva um susto e se joga para trás, desequilibrando o corpo enquanto aperta o gatilho. Uma “coisa” que só tinha visto em telas de cinema de terror avança em sua direção. Ele aperta o gatilho e vários tiros da arma de repetição se espalham pelas paredes e teto. Ele tenta inutilmente mirar no “alvo”, que se movimenta com agilidade impressionante. A “coisa” é mais rápida e se lança num bote mortal contra o homem, que com olhos esbugalhados berra por socorro. Os outros habitantes da embaixada correm com armas em punho. Há um alvoroço dentro e fora do prédio da embaixada. O cônsul é o primeiro a ser levado para o sub-solo, num movimento ensaiado à exaustão pelos seguranças. Na rua, os policiais atônitos sacam das pistolas e disparam ordens para controlar a turba, que ameaça romper os cordões de isolamento. No corredor que dá acesso aos quartos do primeiro andar do prédio da embaixada,  os agentes esbarram na porta do quarto de hóspedes trancada por dentro. Como não sabem o que está acontecendo, gritam pelo infeliz que está trancado no aposento. O que escutam é somente o alto som da televisão. Um oficial dá ordem para arrombar a porta e a mesma é posta no chão aos chutes. Os seguranças avançam apontando as pistolas em todas as direções e a única visão que eles tem é a do terrorista jogado no chão, ainda com a arma descarregada na mão. Ele está com os olhos arregalados e  numa expressão de pavor. Um segurança aproxima o ouvido do rosto da vitima, estirada no meio do quarto. Um som quase inaudível sai da boca do criminoso mais procurado do planeta: “é um monstro”.
         Balbuciou  e se silenciou para sempre, para espanto de todos aqueles agentes armados e boquiabertos.
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          Quinze dias depois e após a imprensa ter divulgado uma nota da embaixada uruguaia lamentando a morte do ilustre hospede, alegaram foi "suicídio por overdose de paralisante muscular", que não conseguiram identificar. Não explicaram as circunstancias em que se deu a “intoxicação”. O corpo foi levado para um crematório e as cinzas enviadas para o país de origem do terrorista. Todos os que foram prejudicados pelas ações do terrorista no mundo, se rejubilaram: a justiça finalmente foi feita. Os governos envolvidos, ficaram perplexos, mas silenciaram os respectivos embaixadores.
         Enquanto isso, no bairro Teresópolis, numa mansão do Morro São Caetano e diante do mirante, um senhor sexagenário bebe uma taça de vinho do porto dividida com seu amigo Orquiz. Brindam o desfecho súbito dos últimos acontecimentos. Estão aliviados e confraternizam enquanto olham para o majestoso e plácido Guaíba, enquanto o  Sol desenha uma imagem semelhante a uma serpente sobre o lago. A mesma que um homem, dono de um chapéu de feltro, também enxerga lá em Ipanema, sentado à mesa de um restaurante defronte a orla.

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