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terça-feira, 21 de agosto de 2012

6 - REFÉNS

O expediente se inicia como todos os dias: ela é a primeira a chegar.
Abre a cortina de ferro da loja de roupas femininas que a irmã resolveu abrir numa galeria da rua Mostardeiro. Acende as luzes, desliga o alarme e abaixa a cortina o suficiente para deixar a porta semiaberta, para que as outras funcionárias possam também entrar no estabelecimento. Faz um ano que o negócio prospera, com excelentes vendas e lucros. Ela e a irmã já pensam em ampliar a loja. Dirige-se para o fundo da loja, onde estão os caixas, o depósito e a escada que dá acesso ao mezanino e administração. Confere algumas notas no caixa e sobe para o escritório. Antes, passa numa pequena copa e prepara o costumeiro café. Da copa vai até o vestiário e põe o uniforme azul com emblema da loja. Entra no escritório e liga um dos computadores.
Neste momento, ouve um barulho de algo caindo no chão. Pensando ser algum colega de trabalho, não presta atenção e se volta para a tela do monitor. Ouve passos rápidos subindo a escada. Resolve se levantar chamando pelo nome da sub-gerente Márcia e quando aponta o nariz no pequeno corredor, leva um susto: um homem magro, de jaqueta e touca, lhe aponta um revolver.
-Fica quieta e entra aí! Berra ele para ela que dá um grito agudo tardio.
 Ele avança e a empurra para dentro do escritório com violência.
-Calada! Onde é que tá o cofre? Vomita! Cadê o cofre? Urrou o estranho enquanto a sacudia pelo braço. Nisso ouve outros passos.
-Noêmia? Você está aí?
O sujeito arregala os olhos e enfia o cano da arma contra o rosto da assustada vitima:
-Quem é essa? Não vou perguntar de novo. A apavorada, já rezando a quinta prece, tenta controlar o choque e balbucia:
-É...é...a minha colega...falou tremendo toda.
-Fica quietinha. Nem um “psiu”.
Os dois ficaram em silêncio. Marta subiu a escada e se dirigiu à copa. Como estava vazia, seguiu pelo corredor e estacou qual um poste.
Noêmia estava chorosa, de pé ao lado de um estranho e com uma arma apontada para a cabeça.
-Aí! Isto é um assalto, mané! Vou fazer essa loja hoje. Você fica quietinha e entra! Não quero queimar ninguém. O malandro passeava o cano da arma pelo ar, indicando a porta da sala.
Marta sentiu as pernas tremerem, mas obedeceu.
Entrou e foi empurrada para dentro. Elas estavam nervosas e trêmulas.
-Pega o que quiser, mas solta a gente. Falou Noêmia, quase engasgando.
-Cala a boca! Já te disse o que quero! Rosnou enquanto esfregava a arma no peito dela.
Marta olhava para a outra e não sabia o que dizer.
-Cadê o maldito cofre? Vociferou e olhou com raiva para as duas apavoradas.
Enquanto isso, um policial militar chamado por um taxista, que viu o homem aproveitar o vão da cortina para entrar na loja, faz um ruído que desperta a atenção do meliante. O mesmo reage iniciando um tiroteio dentro da loja.
O soldado se atira pelo vão ainda aberto da porta e corre para se abrigar atrás de um carro estacionado. O homem de touca empurra as mulheres para o fundo da loja, gritando e gesticulando muito. O soldado chama reforços e em minutos o local está cercado, com um formigueiro de policiais fervilhando, e o transito é interrompido. Uma equipe de Tv vai ao local e começa a cobertura dos eventos numa transmissão ao vivo. Negociadores chegam e travam uma batalha verbal e psicológica com o infrator, que passa a fazer exigências para soltar as reféns.
O comando da polícia reluta em atender aos blefes do criminoso e um plano de invasão da loja é elaborado. Pela televisão, os parentes das vítimas se desesperam. Correm para o local, mas a policia os mantém longe do cenário. Assim, a tentativa de assalto frustrada inicia um longo e tenso período, digno de filmes de cinema. O homem desconhecido dispara em direção do térreo para intimidar e grita ameaças contra as reféns se não for atendido. A polícia não sabe como preservar a vida das duas seqüestradas e pegar o meliante.
O dia corre. Dez horas depois, em outro local...
Um telefonema nervoso faz o dono do chapéu de feltro se encontrar com um outro homem tenso, numa praça no centro de Porto Alegre.
-Não me olhe assim. É minha sobrinha que está na mão daquele delinqüente e assassino.
O homem, que solicitara um encontro urgente com o porta-voz da misteriosa "organização", fumava muito, com longas tragadas. De cabelos escuros e tez morena, aparentando não mais de cinqüenta anos, explanava para o de chapéu, os últimos acontecimentos de que teve notícia pela televisão. Descreveu a angústia ao saber de que um parente é uma das seqüestradas. Narrou a “via crucis” pelos meandros da polícia para obter informações, sempre respondidas em gélidas evasivas e declarações de que tudo estava sob o controle. Resolveu apelar para todos conhecidos, quando uma amiga lhe deu um cartão com o holograma de uma serpente. Ela lhe contou que foi ajudada pela “organização” e que se tornou uma “seguidora” fiel, por isso lhe indicava um caminho pouco ortodoxo para salvar a sobrinha cativa.
-Acalme-se. Não se consegue nada se estando nervoso. Tenha calma. Pediu o homem debaixo de abas curtas sombreando os olhos claros.
-Escute aqui: me disseram que só você pode resolver isso e acabar com este seqüestro..
-Quem disse?
-Esta pessoa. O homem mostra para o de chapéu de feltro a foto de uma mulher. Prontamente a reconheceu: é a esposa que queria aliviar a dor do marido com uma doença terminal.
-Reconheço esta pessoa, mas como posso ter certeza de que ela conversou com o senhor? O olhar do homem de chapéu vasculhava algum sinal delatador de mentira no rosto do outro.
O interlocutor lhe alcança um cartão com o holograma. O homem de chapéu de feltro observa o cartão na mão do tio aflito e toma uma decisão.
-Muito bem. Vou interferir no trabalho das autoridades e salvar sua protegida. Fique o senhor sabendo que estará em dívida comigo.
-Eu pago. Diga-me o valor que eu pago.
O homem de chapéu, em pé e defronte para o outro, dá um sorriso e explica:
-Não estou interessado no seu dinheiro. Dentro em breve terás notícias minhas.
Tão logo acabou de falar, virou-se e sumiu na confusão da rua, abandonando o tio da vitima no meio da praça. O sujeito ficou tão extasiado com a atitude daquele senhor misterioso, com um chapéu fora de moda, que pensou ter sido uma péssima idéia ter pedido ajuda para um estranho. Neste momento, o pai de uma das vitimas liga logo em seguida após a curta conversa no meio da praça:
-E aí? O que conseguiu? Fala de uma vez!
-Não sei. Não conheço este cara, mas parece seguro de si e falou que vai ajudar. Só não disse como.
-Eu estou temendo pela vida dela!
-Olha, vamos procurar a policia novamente e ver se eles nos dizem algo. Também estou nervoso com a situação. Depois eu te ligo.
Desligou o celular e mirando o largo à frente, virou-se e tomou rumo em direção ao Palácio Da polícia.
-0-0-0-0-
Três horas após, em outro ponto da mesma cidade.
Um caminhão Scânia de cinco eixos manobra numa rua calma, fora da área isolada pela policia, mas próximo o suficiente do perímetro vigiado pelas forças de segurança. O motorista vasculha a região com uma câmera de trezentos e sessenta graus, instalada no teto do baú, sem sair da cabine e através de um monitor.
Pelo fone acoplado na orelha, recebe e transmite informações.
-Tá tudo limpo. Posicionado em cima da “estação”. "Tá ligado"?
Ele aguarda o retorno, que não demora:
-Ok! Vamos iniciar o procedimento. Engate o motor.
-Ok!
O motorista movimenta uma alavanca e aciona uns botões no painel. O motor possante do caminhão responde com um ronco característico de ter subitamente se acelerado, para logo em seguida girar quase sem ruído.
Dentro do baú da carroceria, fechados dentro do caminhão, silhuetas se movem.
Um conjunto de monitores e computadores brilham.
Um alçapão é aberto no assoalho do chassi do veiculo. Homens movimentam outra pesada tampa de ferro que se encontra logo abaixo do caminhão.
-Posicionem logo que vamos iniciar a viagem.
Ordenou um dos homens envolvidos na operação.
-Manda ver-falou outro deles.
Imediatamente a “coisa” se põe em movimento. Tudo o que ela “vê” e “sente” é diretamente transmitido para uma Sala de Controle, localizada num pavilhão discreto em algum ponto do bairro Humaitá, na zona norte da cidade.
-0-0-0-0-
Voltando à cena do crime:
Enquanto isso, no mezanino da loja, entrincheirado no vestiário junto com as reféns, o meliante negocia os termos da fuga com um tenente pelo celular de uma das vitimas:
-Quero um carro forte, com bastante gasosa, com motora e trezentos “paus” em notas de cinqüenta. Não quero policia por perto, se não mando bala, entendeu?
-Tudo bem, tudo bem, mas acalme-se, “tá” bom? Estamos providenciando.
O tenente desliga e olha para o soldado ao lado.
-Contate com as “operações especiais”. Vamos cansar ele e depois invadir. Corte água e luz e faça bastante barulho. Usa tudo o que tiver ao alcance para manter ele sempre ocupado, enquanto ganhamos tempo. Chama alguém da “especializada”, pois vamos precisar. E afasta os curiosos daqui.
O subordinado concorda num sinal com a cabeça e se retira.
O tenente fita o prédio e já imagina o “estrago” produzido se a situação piorar, mas não suspeita que perto dali, um grupo furtivo também se movimenta.
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Quarenta e cinco minutos depois, na Sala de Controle:
-Achei a entrada, é esta aqui! Aponta o “engenheiro” para uma abertura na parede de uma espécie de caixa, que aparece na imagem piscante e trêmula de um monitor.
-Vamos entrar. Falou alto outro presente na Sala.
Então a “coisa” avança silenciosamente pelas entranhas do prédio. Ora ela retrocede o movimento, ora se contorce, mas sempre avançando em direção do “alvo”.
Enquanto isso, dentro da loja, o criminoso olha para uma das jovens e se maravilha com o que vê:
-Aí gata. Tu é muito boa, muito cachorra, viu só?
-Tu “ta” na minha ou não?
Olha para ela como quem vai degustar um filé pela resposta.
Ela balança negativamente ao que ele se aproxima, puxa os cabelos de Noêmia e lhe dá um beijo violento, que ela rechaça com um safanão. Diante da reação da jovem, ele lhe dá uma bofetada.
-Tá fazendo doce é? Pois fica ligada: depois desta parada aqui, ó-balança a arma para as duas-vocês vão ser minhas “cachorras”!
E dá um sorriso debochado, mostrando uma coleção dentes muito brancos na boca.
Um ruído quebra o encantamento do aventureiro.
O marginal se apruma curioso.
Novamente outro ruído vindo do vestiário lhe desperta os instintos de sobrevivência. Faz um sinal com a arma para as duas ficarem em silencio. E elas encolhem-se abraçadas uma na outra.
O biltre move-se lentamente em direção do corredor que dá acesso aos banheiros.
Estica o olhar para dentro da peça cuidadosamente, e tremendo, empurra a porta.
-Mas que "porra" é essa?
O que vê não lhe dá tempo de pensar no que é.
Num impulso instintivo mira e ao tentar atirar, sente uma dor muito forte no peito.
Parece que todos os músculos do corpo enrijeceram.
Perde as forças e os sentidos e desaba no chão, e antes que tombe desmaiado, aperta o gatilho.
O projetil ricocheteia no chão e atravessa a vidraça de uma janela, estilhaçando-a. As duas mulheres apavoram-se, achando que serão mortas.
A policia do lado de fora, aos gritos, reage despejando uma saraivada de outros tiros, até uma ordem de “cessar fogo” é berrada pelo tenente.
As reféns miram o marginal estirado no chão, como se estivesse tendo convulsões.
Olham-se e não esperam aviso: saem dali correndo com todas as forças que possuem nas pernas.
Os agentes do Grupo de Operações Especiais lançam granadas de efeito moral e invadem a loja, armados para uma batalha campal, e se deparam com um cenário surreal: o criminoso está vivo e desacordado, tombado no chão e trêmulo. As moças são conduzidas em estado de choque para a rua.
Os policiais  levam o ladrão algemado para o hospital. Ele balbucia coisas incompreensíveis.
As reféns são acolhidas pelos parentes e colegas e a policia é ovacionada pela turba que se reuniu atrás da fita zebrada de “não ultrapasse”.
O delegado e o tenente se questionam o que teria acontecido.
Vasculham a loja para entender o que teria motivado o tiro.
Um dos soldados notou dois pequenos ferimentos no dorso do homem, mas não soube explicar a causa.
O delegado vasculha o local e constata que alguma “coisa” se arrastou por ali.
O que teria sido? O delegado tira fotos com o celular da cena e pede ao tenente que “esqueça” tudo o que aconteceu, ao que o oficial enruga o cenho sem entender a proposta.
Enquanto isso, um caminhão Scânia desliza discretamente para longe do local do tiroteio.
-0-0-0-0
Uma semana depois, na mesma praça no centro de Porto Alegre onde se iniciou este episódio:
-Muito obrigado pelo que fez pela minha família. O senhor salvou minha filha.
Falou um pai aliviado.
-Ótimo que tudo tenha terminado bem. Disse o homem do chapéu de feltro.
-O que posso fazer para lhe retribuir?
-Somente três palavras: lealdade, discrição e segredo.
Disse, sorriu e cumprimentou o outro, tirando e repondo o chapéu na cabeça, para logo sumir em meio a agitação que começava a tomar conta da praça mais famosa da cidade: a Praça da Alfandehga.

Fim de mais um episódio.

Aguardem o próximo.

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