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domingo, 12 de agosto de 2012

5 - EUTANÁSIA: O ENFERMO


      O homem do chapéu de feltro está junto de uma mulher de meia idade, que sentada ao seu lado, na parte superior descoberta do ônibus que faz a “Linha Turismo” em Porto Alegre, rodando pelos pontos considerados “turísticos” pela Prefeitura, escuta dela lacrimosos pedidos para que “acabe” de vez com o sofrimento do marido.
     A mulher já lhe tinha mostrado o “passaporte” para atingir o objetivo nefasto à que se propunha: eliminar o marido enfermo, diagnosticado com Mal de Parkinson, preso ao leito de um grande hospital particular da cidade.
     -Como a senhora conseguiu este cartão? Falou o homem do chapéu de feltro olhando o objeto que ela balançava na sua frente e cobrando-lhe o que ELE prometera a outros antes dela: atenção ao pedido suplicante de “ajuda”.
     -Um advogado que nós dois conhecemos me repassou este cartão, com a recomendação de que eu mantivesse discrição e segredo sobre o nosso encontro. Fiquei surpreendida com a rapidez com que o senhor veio ao meu encontro. O “meu”, digo, “nosso” amigo, me aconselhou também a não perguntar o seu nome.
     O homem do chapéu olhou surpreso para ela. Ele nunca imaginou que alguém fosse optar por aconselhar outro a tratar com estranhos e anônimos, assuntos tão delicados. Tentaria explorar mais o terreno em que estava pisando. Precisava captar da mulher tudo que fosse necessário para entender as forças que a levavam tomar atitude tão extrema contra o marido. E experiência com propósitos escusos não lhe faltou em diversos “pedidos” semelhante e já atendidos.
    A mulher lhe narrou a gradual evolução da doença degenerativa, que comprometia mais e mais o sistema nervoso do marido, debilitando-o lentamente e dificultando-lhe o menor movimento, até torna-lo totalmente dependente de outras pessoas. Coisas simples e prosaicas, como levar um copo à boca para tomar uma bebida qualquer, ele já não podia mais. Ela teceu pormenores do martírio e o padecimento do marido e à situação a que ela está submetida, decretada pelo diagnóstico cruel de que ele nunca mais voltaria a ser o homem ativo que um dia ela conhecera. Entre lágrimas descreveu que ao fita-lo nos olhos, lhe perguntara qual o mais profundo desejo do resto de vida dele, e entre mal balbuciados sons proferira a palavra que iria definir a atitude dela: morte.
   O homem de chapéu de feltro a tudo ouvia calado observando despreocupadamente a paisagem do itinerário do ônibus, que por vezes alcançava a copa mais alta dos caramanchões a muito tempo plantados nas calçadas da cidade. A mulher percebendo que nenhuma reação obtinha do homem calou-se e virou o rosto para frente um pouco decepcionada. Alguns minutos de silêncio depois, o homem do chapéu se reconecta à realidade:
  -A senhora foi informada do que minha "organização" pede pelos “serviços” prestados?
   Falou lhe dirigindo um olhar azul penetrante, tentando vasculhar a alma da mulher.
 -Não temos muito dinheiro, mas se for preciso se dá um jeito. Disse ela encarando o rosto simpático do homem, que lhe parecia mais jovem no jogos de luz e sombra que a paisagem criava sobre o ônibus.
 -Não cobramos valores e sim algo muito mais caro. Disse ele sem titubear.
-O senhor tem o seu preço. Diga-me o valor para ver se posso pagar. Ela estava achando que não conseguiria nada com aquele sujeito que teimosamente se mantinha de chapéu, mesmo contra o vento que o movimento do ônibus produzia.
-Já lhe disse que não queremos dinheiro. 
 ELE continuava a perscrutar o olhar dela, que ela também retribuía fitando-o, como se trocassem uma energia misteriosa tentando uma comunicação não verbal. 
 ELE à observou melhor: os cabelos loiros, levemente grisalhos escorridos pelos ombros pequenos, o olhar castanho –“cor de tempestade”, pensou ELE- um olhar misterioso e implorando para ser explorado, o porte delicado do corpo curvilíneo dela demonstrava que uma preocupação com uma estética e elegância no vestir, que O impressionava. A boca pequena dava-lhe um aspecto de boneca, embora no rosto de traços delicados já despontassem as marcas do tempo e das agruras que sofria. Desconcertado com a situação, ELE se recompõe e desvia o olhar.
-Então me diga o senhor o que eu tenho de fazer para que me ajude? 
 Questionou ela, temendo e esperando por uma resposta que a comprometesse de alguma forma. Ela já estava desejando isso desde que vislumbrou a majestade daquele homem misterioso, discretamente trajado, cujos cabelos cinza e o olhar instigante lhe inquietara já no primeiro contato.
-Apenas vamos cobrar lealdade, discrição e segredo para com nossa "organização". Preciso que Me repasse alguns dados essenciais para o sucesso do “feito”, tais como: em qual leito e de que hospital, quem cuida dele, horários da rotina destas pessoas e quem pode interferir no nosso “trabalho”.
Ela resplandeceu num belo sorriso, que ELE evitou encarar para não demonstrar que estava esmorecendo diante de uma mulher que LHE derrubou as defesas. Ela levantou a mão para tocar-lhe em agradecimento, mas foi em vão. O ônibus freava para uma parada estratégica no mirante do Morro de Santa Teresa. ELE aproveitou e se levantou repentinamente, encarando-a  já na escada que dá acesso ao andar inferior do ônibus:
-Terá notícias minhas. 
 Num gesto de despedida, levantou e repôs o chapéu na cabeça, coberta de cabelos curtos, lisos e claros como algodão, com o melhor sorriso que pode um homem demonstrar para uma mulher, sumindo logo em seguida do campo de visão dela, que tentava segurar a ânsia de reencontrá-lo novamente.
 Dez dias depois, um caminhão baú de cinco eixos, com um potente motor Scânia realiza manobras numa rua atrás do hospital particular Sagrado Coração, localizado num bairro de classe média alta da zona sul, e comandado por freiras especialistas mais em coisas terrenas do que divinas. Dele desce o motorista gordo, enquanto o auxiliar de manobras permanece na cabine. Os dois enfiados em macacões cinza e com bonés na cabeça, vasculham o entorno. O gordo distribui cones, placas e fitas de sinalização de trânsito interrompido em volta do caminhão. Pelos fones de celular, eles se comunicam com a Central de Comando da "organização". O motorista fala para o auxiliar de manobras e apontando para o próprio olho:
-Fica esperto. Qualquer movimento você já sabe.
-“Tô ligado”, gracejou o auxiliar, verificando o campo de visão de uma câmera especial - instalada no topo do baú - num monitor dentro da cabine. O motorista abre uma porta lateral e some dentro do baú. Em seguida, um rosnar do motor indica que outro mecanismo “estranho” foi ativado e ganhou vida. O auxiliar de dentro da cabine varre a movimentação de pedestres e automóveis, transmitindo tudo para o motorista gordo, que dentro do baú refrigerado, vai ligando botões e válvulas de comando, que transmitem potência e energia para a “coisa”, que responde com violência aos comandos vindos de fora, localizado num pavilhão industrial discreto e em algum ponto do bairro Humaitá, em Porto Alegre.
-Levantei tudo sobre o hospital. Cara, tu precisa ver o luxo da coisa. Tá ligado? Parece mais um hotel cinco estrelas! Falou um impressionado jovem de óculos com um boné da Nike.
-Então te hospeda lá! Falou outro, de barba e óculos fundo de garrafa e cara cheia de sardas, rasgada por um nariz protuberante, operando uma alavanca parecida com um joystick.
-Se liguem. Nico, já baixou os arquivos? Interrompeu o gracejo  outro conhecido por “engenheiro” e que manipula uma alavanca cheia de botões parecida com “joystick” de vídeo-game, enquanto mirava a tela de um monitor LCD com imagens, em que visualizava uma sequencia de plantas baixas e perfis de um edifício. Um ponto colorido piscava intermitentemente enquanto se deslocava pelos desenhos formados por gráficos.
-Sim, já na tela. Desta vez tomei o cuidado de verificar os certificados de autenticidade.
-Ok. Respondeu o "engenheiro".
-Entramos! Anunciou o de óculos fundo de garrafa, com o olhar fixo nas imagens transmitidas ao vivo pelas lentes sofisticadas da “coisa”.
-Muito bem. Vamos seguir o plano passo à passo. Direto ao décimo andar. Comandou o "engenheiro".
Quarenta minutos depois, a “coisa” chega na ala do andar reservada ao Centro de Tratamento Intensivo. É um corredor largo, com leitos – separados por falsas paredes – monitorados e com diversos aparelhos mantenedores de vida. Todos estes leitos estão plugados aos pacientes - de diversas idades e sexo - que pouco se mexem, parecendo múmias que tentam se levantar da tumba. Um paciente não vê o outro, mas todos os leitos são observados por câmeras estrategicamente instaladas nos quartos. No meio da área fica o balcão da enfermaria e saletas destinadas aos médicos, que diante de computadores e monitores, acompanham o que acontece no andar. Ao lado das saletas fica a farmácia, os vestiários com banheiros e o almoxarifado. O andar está calmo. Não há ocorrência que exija correria e nervosismo, como sempre ocorre próximo ao momento de um óbito. Apenas uma enfermeira trabalha tranquila, fazendo apontamentos em um prontuário preso numa prancheta de metal. A “coisa” lentamente sai do “corpo” que a transportou até ali e passa por uma porta esquecida aberta no vestiário. Move-se silenciosamente, mas monitorando tudo ao redor. Qualquer movimento que se fizer próximo, a “coisa” imediatamente transmite ao “comando” instalado lá no bairro Humaitá. A "coisa" vasculha o ambiente. Percorre o corredor e se dirige a determinado leito. Parece indecisa. Recua até outro leito. Estica-se para confirmar a identidade do doente. Recolhe-se e volta. Vai até outro leito. Faz a mesma manobra.
-É ele! Alegra-se o de barba e óculos fundo de garrafa e cara cheia de sardas operando uma alavanca parecida com um joystick e de olho na imagem do homem no monitor.
-Não vamos perder tempo. Contando: um minuto! Ordenou o "engenheiro", apertando um botões, que fizeram luzes dos painéis piscarem alucinadamente.
-Agora! Eu sou o carrasco! Vociferou o da cara cheia de sardas, manipulando a alavanca qual um manche de avião com uma mão e acionado outras alavancas menores em outro dispositivo. As ordens disparadas da sala de ”comando” faziam a “coisa” reagir imediatamente. Uma aba abriu-se no dorso da "coisa" e uma espécie de cateter desenrolou-se, apontando e lançando uma luz violeta para a lente da câmera de monitoramento do hospital. A “coisa” abriu-se novamente e pinças se projetaram, formando uma mão de três dedos dotados de unhas afiadíssimas. O enfermo subitamente levantou as pálpebras e pausadamente virou os olhos para a borda do leito. O cérebro ainda ativo do homem não interpretou corretamente a imagem que enxergou, mas imaginou ser a mão suave da esposa dedicada que lhe acariciava o braço, como ela sempre fazia quando vinha visitá-lo. Porém ele queria mesmo era acabar com o sofrimento dela. Doía-lhe mais saber que ela sofria por ele, um inválido. Desejava que ela seguisse outro caminho e fosse feliz, longe daquele inferno. Vinha implorando a todos os santos que ouvissem as preces mentais que ele fazia constantemente, para que fosse levado ao encontro dos antepassados que já tinham ido.
   A mão androide moveu-se desligando e anulando alguns instrumentos. De uma das pinças ejeta-se uma fina agulha, que numa só punção despeja um líquido incolor no saco de soro pendurado numa haste acima da cama. As gotas transferem a solução direta para o corpo do homem. Ele emite um leve frêmito e em seguida adormece. A “coisa” então encolhe as pinças e fecha-se. Um sinal sonoro agudo desperta a atenção dos observadores na sala de “comando”.
-O que foi? Pergunta um deles.
-Tem alguém se aproximando.
-Temos que sair rápido. Grita o "engenheiro" ao mesmo tempo que as alavancas são movimentadas com energia e força.
A “coisa” move-se mais rápido. O ruído produzido chama a atenção da enfermeira, que se ergue da cadeira para localizar a origem do barulho. Porém ela olha para outro lado, em direção à porta de entrada da C.T.I. já aberta por um médico que lhe pergunta se se está tudo bem. Ela argumenta pensar ter ouvido um ruído, como algo metálico sendo arrastado. O médico responde que não escutou nada. A enfermeira então balança a cabeça e se senta na mesma cadeira. O médico entra na saleta e se depara com um dos monitores cheio de estática, que impedem de ver a imagem transmitida pela câmera numero cinco. Pensa ser algum defeito ou mau contato e examina os cabos do aparelho. Como não nota nada, resolve ir até o leito. Ao chegar lá fica petrificado. Não acredita no que vê. Os fios e tubos que conectavam o enfermo aos aparelhos mantenedores estavam cortados e os monitores desligados. O homem no leito parecia dormir um sono eterno, com um leve sorriso nos lábios.
O-O-O-O
Vinte e cinco dias depois, no mesmo ônibus de turismo, porém num banco na parte de baixo, já que a parte aberta estava lotada, um casal confabula cumplicidades.
-Eu estou eternamente endividada com o senhor. Não sabe o alivio e a paz que estou sentindo neste momento. Falou a mulher sem olhar no rosto do homem de chapéu feltro, sentado ao seu lado.
-A polícia e o hospital estão atônitos. Ninguém sabe explicar como foi que aconteceu. Eu mesma fiquei todos estes dias ansiosa, esperando uma notícia sua, mas só tinha o silêncio por resposta. Então, de uma hora para outra, recebo “esta surpresa”. O meu marido enfim descansou em paz. Eu posso lhe fazer uma última pergunta, continuou ela, agora fitando o companheiro de viagem, que mantinha o rosto virado para a frente, evitando olha-la.
O homem do chapéu de feltro que escutava mudo o tagarelar da mulher, apenas assentiu um sim com a cabeça.
-Ele sofreu? Digo, ele sentiu alguma dor? O olhar suplicante não teve a força necessária para demover o homem da posição em que se encontrava.
-Não. Ele não sofreu nada. Foi rápido e indolor. Partiu em paz, depois de ter adormecido.
-Obrigada mais uma vez. Eu sei que um dia terei de lhe retribuir esse favor e sei que farei isso com todo o prazer. Falou ela para ele, com a voz carregada de sentimento, quase engasgando a voz, pois desejava profundamente que de alguma forma ELE lhe cobrasse a “dívida” que tinha contraído com a “organização”. Porém, o homem de chapéu de feltro não emitiu o menor sinal de que fosse efetivamente cobrar algo dela. Apenas levantou-se, ajeitou o chapéu de feltro na cabeça e, desta vez encarando-a com um sorriso cativante, apenas lhe deu adeus, informando que um dia lhe daria notícias. Se despediu cavalheirescamente e desceu do ônibus, sem voltar o olhar para trás, deixando-a chorosa e feliz.

Fim deste episódio.

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